Os modelos europeus e África

by Admin
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Os modelos europeus e África

Entrevista com Paula Menezes, historiadora, professora universitária e investigadora coordenadora do CES (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra).

O que trata o Núcleo de Estudos sobre Democracia Cidadania e Direito?

É um Centro de Estudos Sociais que tem uma vasta abrangência, os grandes objetivos são perceber as sociedades onde vivemos atualmente, os principais elementos que as caracterizam, uma caracterização espessa das nossas sociedades como condição para, nos conhecermos melhor, mas conjugando as ciências sociais no seu sentido amplo. Temos investigadores das chamadas ciências sociais, sociologia, direito, economia, humanidades, literatura, linguística, história, filosofia, e das artes, estudos culturais, arquitetura, etc.

Portanto tentamos compreender o que são as nossas sociedades a partir destas perspetivas diferentes, situadas em diferentes contextos. Fazemos trabalhos de investigação em vários países, sempre apelando a que haja uma inter ou transdisciplinaridade, ou seja que não vejamos os problemas a partir do olhar muitas vezes fechado de cada disciplina, mas em diálogo, em equipas multidisciplinares, estabelecendo diálogos e num segundo momento, que tenhamos sempre como referência preferencial o trabalho com colegas desses contextos.

A partir de 2024 a diversidade passará a ser um critério obrigatório na nomeação do melhor filme aos Óscares de Hollywood, o que acha desta renovação?

Acho que já perceberam que para entrar nos mercados africanos têm que ter a sensibilidade africana, sendo prática e precisa, o continente que mais está a crescer é o africano, o asiático a seguir, o americano e o europeu estão a diminuir. Este ano foi o ano do cinema africano no Festival de Cannes, apesar de nenhum deles ter ganho grandes prémios, entraram 7 ou 8 filmes africanos.

Há realizadores e temas que o cinema norte americano não entende. Não tinha percebido bem isto até que um colega do Senegal, ao falar de um filme do Ousmane Sembène, em que se retrata a vida de uma jovem que vai para França como empregada de um casal francês, quando lá chega não se integra e por fim morre, e aí se gera todo um problema, a necessidade do espírito dela regressar a África.

Se fosse um filme francês, acabaria com a morte dela, num roteiro de Ousmane Sembène, a morte é apenas uma parte, depois o espírito que tem que voltar às origens e há aquelas cerimónias todas, isto um público europeu não entende. O meu colega esteve-me a explicar as diferenças de cognição dos que vêm da tradição judaico-cristã, em que a morte é o fim do corpo e o espírito normalmente nunca é retratado, a não ser em filmes de terror etc. No caso africano uma parte da vida é a vida com os espíritos.

O que acha da implementação do sistema de quotas de admissão ao ensino superior, sobretudo para os afrodescendentes mas também para outras comunidades imigrantes em Portugal?

Em relação às quotas, em Portugal, algumas comunidades imigrantes têm um regime de quotas especial, como é o caso dos refugiados ucranianos que têm apoios especiais em vários contextos europeus, sei também que houve apoios especiais para os sírios, portanto  nem é uma questão de cotas, é uma medida de solidariedade, Portugal tem aberto caminhos especiais, dando benesses a essas pessoas, também o fez no passado em relação à Timor Leste, posto isso, acho que em relação às comunidades imigrantes e aos afrodescendentes não me posso pronunciar, porque parece-me que as questões são contextuais. Por exemplo, temos atualmente em Portugal uma grande comunidade de nómadas digitais, canadianos, norte americanos etc., não acho que devam ter um direito especial de quotas para aceder ao ensino superior ou ao trabalho em instituições do estado. Em relação aos afrodescendentes sim, acho que Portugal devia ter quotas especiais, com condições financeiras distintas para as pessoas das antigas colónias portuguesas, seria uma das formas de fazer uma reparação histórica do colonialismo, acho que é uma questão de equidade, foram retirados às pessoas os territórios, foram obrigadas a coexistir em sistemas muito diferentes, etc. Se hoje Portugal quer reparar parte do mal que fez, devia de facto dar condições especiais para esses extratos, estabelecendo um sistema de cotas.

Concorda então com a imposição de cotas na prestação de serviços do estado e em determinadas instituições?

É preciso pensar com seriedade nesses processos, porque uma coisa é a questão da discriminação em termos da cor da pele, outra coisa é as pessoas levarem outras sensibilidades para dentro das instituições, são dois patamares, sou a favor de que haja de facto sensibilidade para integrar essas pessoas de culturas diferentes através das cotas.

Li com muita atenção um dos relatórios publicados pela socióloga Cristina Roldão, sobre o acesso à educação e eles mostram de forma muito objetiva como as escolas das zonas periféricas treinam os estudantes para não entrarem na Universidade, logo,é preciso identificar e garantir condições de acesso. Mas para mim, será necessária uma segunda etapa, ir além da questão etno-racial e começarmos a questionar outros conhecimentos e já não será tanto apenas a questão dos afrodescendentes, mas questionar quando é que as instituições portuguesas começam a ter, além de britânicos, americanos, russos etc., quando terão também investigadores vindos de contextos africanos e asiáticos ? Já aparecem chineses, indianos etc., mas investigadores africanos em Portugal vejo muito poucos.

Se estamos numa etapa em que é importante reconhecer de facto a complexidade do mundo e descolonizar as democracias, as histórias, as literaturas etc., então precisamos de mais pessoas, como a Inocência Mata, como eu, que viemos de África e estamos cá em igualdade como investigadoras a dizer: a partir de Moçambique eu vejo assim, a partir de São Tomé: vejo assim, e vamos dando um outro contributo, caso contrário continuamos a contar a história de uma única forma, habitualmente numa perspetiva euro-centrada.

Ainda há dias uma jornalista dizia-me que o único país africano que interessa a Portugal é a África do Sul. Já me falta paciência para explicar situações do contexto africano que são completamente desconhecidas. Depois da entrevista acabamos por falar do Quénia, que é um governo de coalizão, o presidente tem que passar grande parte do tempo a negociar as tensões entre os vários partidos que estão presentes no seu governo. Ela dizia-me que não, depois falou-me do Sudão e tive que dizer que não sou especialista em determinadas questões.

Daí a importância de haver uma rede de jornalistas que se especializem e sobretudo uma rede de muito bons jornalistas em países africanos que são fundamentais, uma Nigéria ou um Quénia são países fundamentais do ponto de vista económico etc.. Acho que a primeira coisa a fazer é reconhecer a competência dos quadros de países africanos. Quando se deu a independência de Moçambique, eu devia ter os meus 12 anos e ouvia as pessoas a dizer: "mas agora estes pretos é que vão governar o país, eles não têm competência", e eu pensava mas de onde vem esta ideia, o que define a competência das pessoas, será a cor da pele?

Houve erros políticos como têm todos os governos, não é um monopólio africano. Neste momento existem governos de maioria negra em todos os países africanos, é uma grande conquista, todos os governos africanos neste momento são essencialmente representativos das maiorias dos países, isso é muito importante.

A BBC tem jornalistas e pivôs que, mesmo a falarem todos a língua inglesa, dão-lhes uma visão mais realística da complexidade do continente africano e passam no canal genérico da BBC. Em Portugal, as notícias que se produzem sobre África são para a RTP- África, não concordo, nem entendo como é possível se achar que Portugal não precisa de entender o que se está passar nos países africanos.

E isto quando em Portugal já existe a adoção de uma cultura que é fusão, é normal ver portugueses a dançar a quizomba por exemplo, mas já ouvi música do Roberto Chisonso de Moçambique, em meios aparentemente portugueses e também já os ouvi tocar música moçambicana, portanto há mais coisas a acontecer, mas isto a nível dos circuitos comerciais, a nível das televisões e de órgãos do estado acho que não acontece nada.

A disciplina de Educação para a Cidadania não devia ser obrigatória em todas as instituições do ensino primário e secundário?

Acho importante mas devia ser uma Educação para a Cidadania que reconhecesse e discutisse também a complexidade histórica que é hoje Portugal. Na minha opinião é porquê que determinadas identidades que são adjetivadas, por exemplo português de origem cabo-verdiana, e porque não português? Eu tive um colega negro francês a quem perguntei: és de onde? Ele respondeu-me: sou de Paris, sou francês, percebi logo que me estava a dizer que não tinha nada que pôr em causa a sua cidadania francesa, é algo que incomoda muita gente e acontece comumente, fazerem essa pergunta apenas por causa do tom de pele das pessoas.

A quantidade de portugueses que tem vindo devolvida da Venezuela ultimamente, alguns já nascidos lá, mas como são brancos, ninguém lhes pergunta de onde são, até abrirem a boca, portanto acho que a Educação para a Cidadania seria boa, de facto, para pôr as pessoas a refletir sobre as ligações de Portugal com o mundo de forma crítica e construtiva. Para que aprendessem as partes complicadas da herança histórica, seria uma forma também de contribuir para as reparações, reconhecendo que estas pessoas todas que cá vivem são portuguesas. Não falo só dos afrodescendentes, refiro-me também a questão dos ciganos da comunidade Rom em Portugal, que é uma comunidade com uma longa história e durante muito tempo não foi reconhecida, há sempre este problema de se considerar uns cidadãos de primeira e outros de segunda.

Os ciganos portugueses estavam ou estão sob a alçada do Alto Comissariado para as Migrações, através do Observatório das Comunidades Ciganas, como se não fossem portugueses, apesar das suas especificidades. A Educação para a Cidadania devia ser fundamental para desfazer mal entendidos e promover uma reflexão profunda sobre o quê que significa ser português. A história de Portugal está mal contada, e continua praticamente intocável em relação à narrativa pré 25 de Abril, sobre o mundo que Portugal deu ao mundo, como se não houvesse pessoas nos territórios “descobertos” e ocupados.

Um pequeno exemplo, há vários manuais que dizem que através dos descobrimentos Portugal levou o cristianismo a muitos lugares, o cristianismo na verdade era religião de estado no império de Axum, o povo etíope adotou a religião cristã, adaptou-a à sua realidade e tornou-a uma forma de identificação de sua nacionalidade. Isto levanta a questão: Até que ponto o cristianismo é ou não uma parte fundamental da herança africana? O cristianismo espalhou-se por toda a região que vai do Egipto ao Uganda, praticamente a partir do primeiro século da nossa era. Ao fim de dois mil anos o cristianismo não era parte de África ?

Numa outra dimensão existe a questão dos contactos, de como as sociedades se vão inter construindo, por exemplo em Cabo Verde, um dos pratos típicos, porque dentro da construção do estado nação, muitas vezes a identidade nacional, faz-se também a partir da alimentação, da comida, em Cabo Verde temos a cachupa, feita a base de milho, mas o milho vem do México, em Portugal há um prato típico que é o arroz doce, mas o arroz vem do Oriente e a canela também não é de cá, vem da zona de Timor, isto demonstra que há contactos e havia outras culturas a produzir e a gerar conhecimento, não era só Portugal, logo, a narrativa dos descobrimentos está errada.

Muitas vezes quando falamos destas questões, uma das coisas que me põe os cabelos em pé é a descrição de que Portugal comercializava, coco, amendoins e escravos, reduz-se um ser humano à categoria de objeto, mas esse foi o grande objetivo da colonização, transformar pessoas em objetos, em finais do século 19, com as suas estratégias de colonização modernas Portugal ocupa territórios que não eram seus e transforma quem lá habita em objeto da sua intervenção através daquilo a que chamou o Estatuto do Indigenato que é integrado na Constituição Portuguesa de 1933, declara as colónias como territórios portugueses que não se podiam separar da nação portuguesa. Por isso teve que haver uma alteração constitucional em 1974, para haver as independências. As pessoas poderiam ter a cidadania, se mostrassem que tinham assimilado os valores portugueses, era um objetivo político, o Estatuto do Indigenato só foi formalmente abolido em 1961, quando começou a guerra em Angola.

A história que atualmente é lecionada aos estudantes em Portugal não condena as descobertas nem o colonialismo, apenas a escravatura não?

A escravatura sim, o problema é a questão colonial que ainda se reflete no presente. Ainda há dias li uma cartas da Rainha Nzinga que a Rosa Cruz e Silva postou no Facebook em que ela aparece a assinar papeis, portanto havia outra estrutura de poder que não era a presença portuguesa, o colonialismo apaga essas estruturas. Então como é que vais defender a necessidade da democracia e do reconhecimento das estruturas tradicionais quando apagaste as que encontraste em África? Não se consegue justificar isso.

Portugal e outras potências europeias terão que admitir para dentro dos seus países, que houve um erro na sua história que foi a questão colonial, que não deviam ter feito aquilo, não tenho muita certeza de que as reparações sejam a melhor forma de o fazer, porque a destruição foi de tal ordem que não há dinheiro que pague aqueles estragos. Em Angola há uma questão fundamental, metade do país estava vazio na altura da independência e uma das razões era porque as pessoas tinham fugido das razias escravocratas, um problema grave, são processos de uma violência muito grande.

Estamos horrorizados com o que aconteceu na 2ª Guerra Mundial e com a eliminação da população judia, imaginemos isso, no caso das Américas durante 500 anos, no nosso durante 100 anos, não digo 500 anos, o colonialismo moderno são 100 anos, mas há o trauma da escravidão que também é brutal.

Contudo, há uma tentativa, mais que óbvia de silenciar tudo que está ser feito como alternativa à narrativa dos descobrimentos e da supremacia colonial, a minha leitura é que se pode falar das questões coloniais desde que se inscrevam dentro do quadro que a Europa permite, se foges a isso, não acontece nada, já perceberam, pelo nível que este debate atingiu, que haverá um momento em que a grande exigência será a Europa reconhecer que a intervenção colonial foi violência, não é uma questão de dinheiro, mas de admitir que o que lá foram fazer não se faz, romperam com as nossas instituições, com a nossa história, com as nossas formas de participação política etc., isso põe de facto fim àquilo que é um projeto político homogéneo, segundo o qual, o estado nação em que vivemos é a melhor forma de organização política.

Muitas vezes ouvimos que Portugal deu a CPLP, o estado, a língua e o direito, e pensamos: então andávamos todos à pancadaria uns com os outros, não havia formas de organização nas nossas sociedades antes da presença colonial?

Há uns 4 ou 5 anos, fui convidada pela Inocência Mata, para fazermos, mais Pedro Schacht, um livro pequeno que fosse alternativo à história portuguesa sobre a questão africana, inicialmente seria para as escolas de maioria africana/negra, mas nós dissemos que devia ser para todas as escolas, o nome do livro é: Uma Outra História (Uma visão diferente da Expansão portuguesa e do colonialismo apresentada aos alunos do 3º ciclo do Ensino Básico).

Esse projeto andou pra frente e para atrás, colocaram uma serie de questionamentos e problemas, um deles era a questão do cristianismo, perguntaram se tinha mesmo a certeza, mas toda a gente sabe, que o Império de Axum foi o segundo no mundo a ter o cristianismo como religião de estado, só quem não conhece a história faz essa pergunta.

Houve outras partes desse manual que geraram muito desconforto por citar o período em que África conquistou a península Ibérica. No princípio do século VIII, o poder muçulmano crescia no noroeste africano, os Árabes (sírios, persas, egípcios e berberes), todos dominados pela mesma fé, atravessaram o Estreito, vindos das mais variadas partes, conquistaram e penetraram profundamente em quase toda a Península Ibérica, atacaram de sul para norte e, uma vez chegados ao centro de Espanha, expandiram-se para ocidente, apoderando-se do território que hoje é Portugal, foram senhores de uma vasta região com cerca de 600 000 km2. Daí que de vez em quando, lemos que na Península Ibérica há uma forte contaminação e presença de códigos genéticos africanos, isso não está nos manuais de história, não se fala disso. Gera-nos alguma perplexidade perceber que as pessoas não querem ler mais além, os livros de história fazem parte de um projeto político. O livro que fizemos, por fim não foi publicado.

Que disciplinas no âmbito dos Estudos Sociais devem merecer uma reavaliação e ou modificação?

Na minha opinião não é apenas necessário rever os manuais da disciplina de história, mas todas as disciplinas. Por exemplo as discussões na área de medicina, de repente temos uma série de conhecimentos que supostamente vêm da herança grega e romana, e depois saltamos para a idade média, como se no meio não houvesse nada, a descoberta a sério do sistema de circulação foi feita por muçulmanos, o mar mediterrâneo era um mar de circulação de conhecimentos e pessoas, isso não está presente no conhecimento da história da medicina, a moderna bio medicina aparece como tendo origens nos romanos e nos gregos sem passar nunca por outras partes do mundo.

Também temos que perguntar como Heinrich Hermann Robert Koch, o alemão que identificou o bacilo da tuberculose, também chamado bacilo Koch, recebeu em 1905 o Prémio Nobel de Medicina e Fisiologia? Ele fez experiências em contexto africano, acho que na zona do Togo, basicamente andou a matar pessoas, os chamados indígenas nos quais experimentou os seus remédios, e fez isso a uma escala brutal.

Será que merecia um Prémio Nobel da Medicina apesar desse lado malvado da sua experimentação? A própria DW publicou um artigo sobre a dúbia herança desse médico, no qual questiona se ele foi um investigador ou um médico colonial sem consciência?

Portanto é preciso primeiro, demonstrar que parte do conhecimento de determinada disciplina não é só oriundo da Europa e num segundo momento mostrar que alguns dos investigadores europeus não tiveram o melhor comportamento, diria que não é apenas um problema das Ciências Sociais, mas sim de todo o conhecimento usado hoje em dia na Academia. É precisa questionar de onde vem? Quem contribui para o mesmo?

A nível da astronomia estudamos sempre que a teoria heliocêntrica é produzida por Johannes Kepler, de origem polaca, também estudamos que o sol era a grande referência do antigo Egipto que tinha um calendário solar e não lunar, assumia que a terra era o centro do universo, assim como acontece a mesma coisa com o Império Inca, e então no quê que ficamos?

O conhecimento cientifico é todo produzido periodicamente em vários contextos e o que temos hoje como moderno conhecimento é uma tentativa de mostrar que o conhecimento moderno sai da Europa, mas já estamos carecas de saber que não é assim, há outras origens, acho que temos que voltar atrás numa serie de disciplinas e reequacionar as raízes das afirmações sobre as origens da medicina, do direito, etc., de quem foram as grandes contribuições ?

No direito por exemplo, fala-se dos códigos de Hamurabi na Mesopotâmia, foram ensinados como sendo a referência mais antiga das estruturas de poder, que configuram a existência de um estado com legislação própria. Depois somos capazes de ensinar aos estudantes dessa mesma faculdade, que o estado é uma invenção europeia. Portugal diz que deu aos PALOP a língua, o direito e o estado. Há de facto uma necessidade de esclarecer muitos desses processos. Uma disciplina como a Educação para a Cidadania devia ter a obrigação de abordar esses aspetos.

Este é também o problema do acordo ortográfico, pressupõe que tenhamos vários, para uma série de línguas. Em conversa com os meus colegas linguistas e de literatura diziam-me que um acordo ortográfico sobre língua portuguesa pressupunha um acordo para as muitas línguas que se usam dentro dos países, já muitas universidades usam e são partilhadas com os países vizinhos.

Chengane em Moçambique não se escreve da mesma maneira que se escreve na África do Sul, então devia haver acordos. Mas é de uma brutalidade em custos que ninguém está interessado em investir nisso, há acordos dentro dos países mas não entre países. No caso de Angola há algum acordo entre Angola e a RDC sobre o Bakongo? Se não, cada país está usar a língua com influências do francês e português.

Não creio que haja acordos para o uso da língua inglesa e francesa?

Não, tanto que encontramos nos corretores dos programas dos computadores uma série de versões do francês e do inglês, por exemplo, encontramos francês dos Camarões, do Canadá, das Caraíbas, do Congo RDC, da Costa do Marfim, da França, do Haiti, do Luxemburgo, do Marrocos, do Mônaco, da Reunião, do Senegal, da Suíça.

Do inglês tem da África do Sul, da Austrália, Belize, Canada, Caraíbas, Estados Unidos, Filipinas, Índia, Indonésia, Irlanda, Jamaica, Malásia, Nova Zelândia, Hong Kong, Reino Unido, Singapura, Trinidad, Zimbabwe, portanto estes já se posicionaram, já fizeram as suas variantes. Do português temos o de Portugal e o do Brasil, obviamente há aqui uma disputa dos mercados livreiros destes dois sobre o resto.

Angola não está usar o novo acordo ortográfico, nem Moçambique, assinaram mas não foi retificado pela Assembleia da República, enquanto não forem retificados não entram em vigor, outra maneira de se parar a solução dos problemas. Havendo um acordo sobre o português, teria que haver um acordo com os países fronteiriços que partilham a língua, o acordo foi feito na assunção de que o português é língua nacional, mas não é, na verdade está-se a tornar, em Angola e Moçambique.

Ao impor uma regra destas, está-se a fechar o português dentro de um acordo que foi inicialmente organizado, em finais dos anos 80, sobretudo entre Portugal e Brasil, sem a participação dos outros países de língua portuguesa, o acordo não é apenas uma questão de grafia, é uma questão também do conteúdo das palavras.

O primeiro problema é que as grafias dos países estão a mudar e têm letras no alfabeto que nem sempre existem no país ao lado, e também a questão das pronúncias, por exemplo em Moçambique dizemos Tanzania, sob influência do Inglês, em português é Tanzânia. Conforme o acordo ortográfico, devemos escrever de acordo com a pronúncia do país, isso vai levar à introdução de grandes exceções, portanto há uma questão em aberto sobre estas outras versões do português.

Por outro lado, fazer um acordo ortográfico sobre a língua portuguesa obriga a que haja outro sobre as línguas nacionais dos países, porque por exemplo no caso de Moçambique partilhamos várias línguas nacionais com a África do Sul.

Isso significa que cada um dos nossos países terá que fazer uma série de acordos com os países vizinhos o que não é prioridade neste momento, o lado mau de tudo isso, é que pelo menos em Moçambique temos muitos livros a serem produzidos em Portugal e Brasil sem ter em conta as especificidades do português de Moçambique, que deviam entrar nos livros didáticos.

Se não me engano houve um acordo dentro da CPLP, segundo o qual, os países que já tinham o acordo retificado pela Assembleia, já o podiam aplicar, mas é um acordo que não é vinculativo a todos os países, antigamente as questões da CPLP tinham que ter unanimidade para serem vinculativas, mas no caso do acordo ortográfico isso não acontece. Para mim esse acordo é um tiro no pé, porque não podemos comparar países que têm o português como língua oficial há 400 ou 500 (Portugal) e há pelo menos 200 ou 300 anos (Brasil) com os outros países que só há 30 ou 40 anos reconhecem a língua como vetor de comunicação.

Na minha leitura, o português foi ganhando terreno em Angola sobretudo por causa da guerra, o que não ocorreu em Moçambique, neste momento estamos com uns 49 a 60% que usam o português como segunda língua, como língua materna estamos abaixo dos 20%, e Portugal não quer refletir sobre isso, quando se deu a independência de Moçambique havia muito pouca gente a falar português, tínhamos uma sociedade assimilada muito pequena.

Acho que o se passa é o uso estratégico do recenseamento. Em vários estudos que tenho visto sobre a língua portuguesa aparecem 300 e tal milhões de falantes, em relação ao Brasil a maioria tem português como língua materna, mas no caso de Moçambique, Angola, não podemos dizer que a língua materna da maioria seja português, nem em Cabo Verde, nem na Guiné Bissau, nem em Timor Leste. Portanto Portugal quer se projetar como tendo uma comunidade linguística muito grande, mas são dados que não correspondem à realidade.

O meu desafio a Portugal é fazer notar que, na altura das independências não havia muita gente a falar português mas sim línguas nacionais. Em Moçambique há um grande movimento para que as línguas nacionais sejam ensinadas nas escolas e sejam parte da herança cultural do país.

Um colega meu que também é jornalista tem um projeto super interessante, que é a introdução no Google da tradução de uma das línguas de Moçambique, porque já há várias línguas africanas com tradução no Google, sobretudo da África Ocidental. Isto significa que há países em defesa das suas línguas que estão a criar roteiros online para se fazer a tradução direta, a Google está patrocinar isso.

Na sua visão, que outros elementos tendem a ser alterados?

As grandes viagens de exploração do século XIX atribuíram classificações a espécies de plantas e animais que foram catalogadas em função do sistema que estudamos. A classificação de Linnaeus, que abrange o reino animal e o vegetal, muitas designadas como espécies que fazem um elogio a alguém que as teria “descoberto”. Havia um desconhecimento profundo do que era o continente africano. As viagens do Livingstone, Capelo, Ivens, Burton, têm ainda hoje, restos de presença na classificação de animais e plantas, mas numa série de contextos africanos os nomes/classificações em latim estão a mudar.

Por exemplo, a árvore do cânhamo, daquilo a que se chama amarula, o nome até aos anos 90 era Sclerocarya caffra, (caffra no sentido de caffir, selvagem e por aí), agora é Sclerocarya birrea, (porque se faz cerveja à base dela). As vezes abro o Atlas e penso: mas esta espécie é nova, depois tenho que voltar atrás para perceber onde houve a alteração do nome, está a acontecer não apenas no continente africano que sigo mais de perto. Esse tipo de ocupação estratégica das designações científicas quis transmitir que tudo que se conhece é a partir do pressuposto cientifico aceite na Europa.

Há várias espécies que estão a ser renomeadas, é um movimento que terá começado a partir do século 21, no sentido de dizer que muitos animais e plantas já eram conhecidos, antes das viagens exploratórias do século 19. Na retomada do espaço geográfico, pelos africanos, vemos vários países a mudar de nome, as antigas colónias inglesas mudaram todas de nome, depois vemos as mudanças dos nomes de províncias, de ruas etc. Agora estamos a entrar no mundo científico, na alteração das classificações da fauna e flora.

Por acaso foram colegas de Biologia da Universidade Eduardo Mondlane que me chamaram atenção de que está haver esse processo, mostrar que, de facto, quem vivia naqueles locais conhecia esses animais e plantas, que foram renomeados e classificados à partir de instituições europeias como os museus de Londres, França etc. Neste momento há um reclamar, uma movimentação no sentido contrário, dando relevância aos nomes africanos que já existiam, é uma maneira de repor a história, e uma contribuição no espaço das histórias cientificas.

O dilema é que as relações económicas e políticas são muito diferentes, é muito difícil conseguirmos mudar a correlação das forças e sempre que tentamos, há forças externas que procuram desestabilizar os nossos países, diria que dos 55 países africanos que temos hoje, 54 são de orientação política neoliberal, é uma escolha com grandes implicações e intervenções externas, apesar disso, creio que começamos a ter cada vez mais países africanos a tentar mostrar novamente a sua independência aos países do norte.

A intervenção cristã e a intervenção islâmica têm raízes profundas em vários países, veja-se o caso da Etiópia, em que é muito complicado dizermos hoje que é um estado moderno sem raízes religiosas e isso já nos faz colocar a questão: como é que são estado moderno se têm raízes religiosas? Portugal é um moderno estado nação mas tem símbolos religiosos. Têm uma coisa que se chama penitenciária, vem do padre penitente, se alguém se porta mal tem que se penitenciar. Há a questão ao contrário, em vários contextos europeus as autoridades tradicionais mais elevadas estão presentes, é o caso da Câmara dos Lordes, que é mais uma questão cerimonial. Mas estão, há espaços para eles, não só representativos mas também como forma de poder eivaido aos reinos europeus, os reis são todos autoridades tradicionais, logo não percebo porquê que se chateiam tanto com as nossas autoridades tradicionais mas têm as deles. O único problema é que quiseram acabar com as nossas.

As autoridades tradicionais não as podemos jogar fora, são parte da nossa herança. Vamos continuar a dizer que as autoridades tradicionais não têm peso se andamos numa luta armada em nome da emancipação e do reconhecimento da complexidade cultural dos nossos países? O Rei do Congo era uma entidade muito respeitada pelos portugueses até morrer em 1995.

Lembro-me de ver fotos e ler sobre o Rei do Congo, era uma estrutura assim como temos hoje na África do Sul, uma perplexidade interessante, temos o Reino do Kwazulo dentro da província do Kwazulu natal, assim como temos o Reino do Uganda dentro do Uganda, há uma coexistência, então no caso da Nigéria nunca mais acaba. São experiências não muito faladas fora do contexto desses países. Para a maior parte das pessoas que faz análise política estamos todos errados, e enquanto não tivermos um modelo que seja o europeu a coisa não funciona. Mas para nós, também é um desafio, porque são lutas de poder.

O Mapa Cor de Rosa de que tanto ouvimos falar nas lições de história o que foi?

Foi uma tentativa de Portugal justificar que tinha ligações históricas com Moçambique e evitar perder uma faixa de terra sob os interesses dos ingleses, sobretudo liderados por Cecil Rhodes, que fez uma fortuna fabulosa através de várias atividades económicas na região austral, que em sua honra se passou a chamar Rodésia do Norte e do Sul. Ainda existem as bolsas Cecil Rhodes, já que ele legou grande parte da sua herança a um Instituto que veio a ser a Universidade de Oxford, essas bolsas continuam a ser disponibilizadas, e sabemos de onde veio o dinheiro do Cecil Rhodes.

Foi ele também que comprou um ou dois dos pássaros sagrados do grande Zimbabwe. Isto ocasionou uma série de problemas porque o Zimbabwe queria os pássaros de volta e estavam na África do Sul. Não sei como acabou, mas um desses pássaros, creio eram quatro, terá sido vendido por um aventureiro ao Museu de Etnográfica de Berlim, no início do século 20.

Quando a Alemanha perde a 2ª guerra mundial, a União Soviética leva esse objecto como despojo de guerra e o mesmo esteve anos no que é hoje Petersburgo, em Leningrado. Mais tarde, num gesto de apaziguamento entre a URSS e a República Democrática Alemã a peça foi devolvida ao Museu alemão e quando em 1980 se dá a independência do Zimbabwe, a Alemanha devolve a peça ao Zimbabwe.  A peça passeou pelo mundo mas voltou ao Zimbabwe. Isto para mostrar a complexidade da história. Muitas vezes nós africanos participamos dessas ações de várias formas, nem sempre estamos no papel que se gosta tanto de nos atribuir, que é o de vítimas, as vezes estamos como sujeitos políticos ativos.

Como explica a evolução histórica pós independências dos sistemas políticos nos países africanos de língua portuguesa?

A minha leitura histórica da questão é que estamos a entrar num processo complicado, com as independências, é uma altura em que o chamado bloco socialista já está a cair, isso só veremos à posteriori, mas se nós hoje ainda somos considerados inferiores e vê-se a forma como somos tratados, sempre que temos uma opinião diferente de qualquer país europeu, tínhamos por obrigação alinhar com Portugal, o Quénia tinha por obrigação alinhar com o Reino Unido, Senegal com França, estas são as filosofias da descolonização europeia, mas nós dizemos que queremos outros caminhos. É um dos grandes desafios da União Africana, pensar outra coisa.

O pensar outra coisa é complicado, primeiro porque há a questão temporal. Não posso estar a comparar a sedimentação política que aconteceu em países como a França, que tem 200 anos, com os nossos países que têm 50. Se atentarmos bem ao que se passa em França e na Espanha com o problema dos catalães e dos bascos, os problemas não se passam só em África. O que é muito grave é a insistência permanente na mentalidade política europeia e do mundo, de que somos incompetentes e não nos sabemos administrar, aí acho que há de facto problemas, somos o último grande continente cheio de recursos por explorar e há gente muito interessada naquilo que, em economia política se chama acumulação primitiva, gente que não se importa de entrar em conflitos para controlar esses recursos e vender a quem der mais.

Que relações se podem estabelecer entre os sistemas pré-coloniais, coloniais e pós-independências?

A nível dos nossos países, em termos de heranças políticas, andamos literalmente a fazer experiências, primeiro saímos das independências e tínhamos que agarrar aquelas fronteiras. Lembro-me de uma afirmação do falecido presidente Eduardo Mondlane: podemos não herdar nada de Portugal, mas vamos herdar o estado. De facto temos essa herança. Em Moçambique, tentamos, houve um projeto político no sentido de fazer outro projeto de estado, foi absolutamente impossível porque em 4 ou 5 anos não se desfaz uma coisa e faz-se outra.

Não estou de acordo com as opções neoliberais da maior parte dos nossos governos, são a continuidade do modelo colonial que é servir a quem serve o vencedor. Há experiências interessantes a nível de introdução de autoridades locais na administração e gestão do país, no problema das línguas etc., está a acontecer em vários países e as leituras que se fazem são sempre negativas, sem nunca se tentar perceber seriamente tais experiências. É o meu grande problema, porquê que tudo que fazemos à priori está errado?

Em relação à copiar tudo que o colono faz, é uma questão que só conseguiremos debater quando tivermos uma geração bem formada de jovens que se interessem de facto pela contenda política e estão muitos a ser formados agora. Temos a vantagem de ter uma população muito jovem que de uma forma ou de outra, leem e pensam, podem não aprender nas escolas, mas aprendem em clubes de leitura, em círculos de amigos, discutem política e assumem-se como cidadãos angolanos e moçambicanos, quenianos, querem saber o que vai acontecer com o país deles.

Já temos uma juventude muito exigente, que não é a juventude dos partidos políticos, são jovens cuja opção política é o seu país e discutem muito o país, não digo que não são políticos, são-no, mas noutra dimensão. Estão preocupados com a questão ambiental, com a questão da habitação, da educação, da saúde, da independência económica, isto são tudo vetores fundamentais, não posso dizer que não sejam pessoas de valores.

O que acha da CPLP?

É um bom ambiente de negócios, simplesmente. Não podemos criar uma comunidade não sendo o contexto da comunidade, não vejo nenhum interesse nem de Moçambique, nem dos angolanos que já estiveram a frente da CPLP em promover um diálogo para se conhecer a fundo as complexidades dos países que integram a CPLP, mas é uma plataforma que ajuda os negócios entre esses países, isso não podemos pôr em causa, agora do ponto de vista de contactos políticos, negociações não vejo grandes novidades. Também há jogos políticos interessantes, creio que frequentemente há uma tensão entre Portugal e Brasil. Ouvi o presidente Lula a dizer: Nós vamos voltar a África e perguntei-me mas qual África? Aquele pequeno país ou a qual África ele vai?

A chamada cooperação Sul-sul existe ou tem condições de existir?

Faço uma diferença entre cooperação e solidariedade, cooperação são interesses económicos, das empresas e dos países, cada um bate-se pelos seus, solidariedade é estar lá a apoiar, ocorre mais entre as pessoas, Associações, países que se solidarizam com outros, vão para lá trabalhar, eu por exemplo quando acabei o PCU tinha muitos professores da Guiné Conacri, eram cooperantes mas ganhavam quase o mesmo que ganhavam os moçambicanos, depois chegaram os cooperantes soviéticos que tinham casas melhores que nós, os europeus, a maior parte da Europa Ocidental e ganhavam 3 vezes mais que nós e tinham direito a casas melhores que as nossas, isso é cooperação.

Moçambique tinha na altura da independência uma grande cota de mercado da produção de açúcar que perdemos, acho que quase toda para o Brasil que nunca nos la devolveu quando fizemos a paz, portanto há cooperação entre os dois países e não solidariedade. Solidariedade Sul Sul, houve e continuará a haver, Moçambique recebeu e conseguiu sobreviver, face a saída maciça de portugueses com a chegada de contingentes de trabalhadores solidários do Brasil, do Chile, Argentina e de outros países, havia solidariedade, viviam como nós com questões de racionamento, etc.

Isso considero solidariedade Sul Sul, assim como o apoio de armas, formação militar, etc. dada pela Argélia, o resto é cooperação, que pode jogar bem quando conseguimos estabelecer mecanismos de cooperar entre nós, melhorar não, como acontece no Mercosul, que é sobretudo um mecanismo económico para os países do sul não estarem sob o controle do mercado americano, é importante mas é preciso, que nestas condições, de facto haja um investimento a longo prazo, creio que há tentativas de se fazer este tipo de cooperação agora na SADC e há avanços em termos económicos, em alguns contextos, a nível da energia elétrica há cooperação ali na região, mas talvez não seja a melhor, mas se Moçambique desligar Cahora Bassa, vários países ficarão com muito pouca energia.

A que atribui a não cooperação de Portugal com as ex-colónias nos sectores da saúde e educação?

Mas Portugal está interessado em formar quadros angolanos e moçambicanos? Se estivesse nunca se teria colocado a exigência de reconhecimento dos nossos diplomas do ensino secundário, não conseguimos ainda que os mesmos tenham a paridade que tem a escola portuguesa.

Para estudantes angolanos e moçambicanos virem estudar em Portugal têm que reconhecer papeis, sei lá quantas vezes e levanta-se uma suspeita enorme sobre o seu nível e as suas competências. Como é que se quer promover a língua portuguesa e a cooperação se o que estudamos nos nossos países não tem valência? E há um estereótipo que recai sobre nós de que a nossa preparação é débil, eu também já apanhei aqui estudantes portugueses e em vários contextos que também não são bons.

O governo brasileiro, na última visita de Lula, uma das coisas que conseguiu foi a equivalência de diplomas da escola secundária. Creio que a coisa está mudar porque há muitos portugueses que querem estudar no Brasil, sobretudo, pelo que tenho conhecimento o ensino superior estatal no Brasil é gratuito. Sei que muitos portugueses querem fazer doutoramentos no Brasil, há boas universidades, o alojamento e comida não saem tão caros.

Enquanto não houver interesse da parte de Portugal não se farão acordos de reciprocidade. Creio que ao fim de 49 anos de independência, alguns quadros Angola terá, por muito desastrosos que tenham sido alguns aspetos da sua formação, deve haver quadros de qualidade, é preciso uma forte pressão para o reconhecimento dos estudos feitos em África.

A invasão de determinadas colónias fez-se consoante condições geográficas e climáticas, e não conforme escolhas das autoridades coloniais ?

Depende de vários elementos, mas primeiro do tipo de sistema colonial que funcionou. Angola, Moçambique, Quénia, Argélia, eram colonias de povoamento, há uma exportação maciça de colonos para esses territórios e para que se estabelecessem foi necessário exportar com eles uma série de instituições de que precisavam para viver nesses territórios, as escolas, hospitais, bancos, correios, os tribunais, etc.. É aquilo que Edmund Said vai chamar a construção das pequenas Europas como também aconteceu no Brasil, Chile, Argentina, constroem-se pequenas réplicas do contexto original e depois as instituições para servir aos colonos não os indígenas.

Até meados do século 19, as ocupações de territórios eram pela disputa de zonas de influência económica para fins comerciais. Depois quando se começa a perder o controle sobre as Américas e Ásia dá-se a corrida a África, algo que estamos novamente a assistir, uma corrida aos recursos africanos. Essa corrida desenfreada está na origem da Conferência de Berlim e de uma série de outras que se lhe seguem para definir o acesso à esses recursos e à essas regiões, daí que as fronteiras de África não fruto das nossas opções, foram traçadas na maior parte dos casos, fora de África. Eu diria que a Guiné servia sobretudo para a produção de oleaginosas, não teve uma supra estrutura colonial administradora, o que explica parte dos problemas que há hoje, em que se mantem a obrigação de negociar com as autoridades tradicionais que são poderosas.

As colónias têm vários objetivos em função das metrópoles coloniais, servem para exportar mão de obra excedentária, teoricamente os colonos portugueses deviam ir todos para Angola e Moçambique mas como não se conheciam bem esses territórios, as pessoas continuaram a imigrar clandestinamente para França, para o Brasil, mas há um processo de esvaziamento de mão de obra excedentária cujo destino eram a colónias e que hoje temos de novo, de forma diferente que são os expatriados.

Aqui em Portugal não somos expatriados somos imigrantes, mas os ingleses, franceses, portugueses etc. em Angola são expatriados não são imigrantes, portanto temos que perguntar o porquê destas diferenças, e porquê que ganham mais que nós quando temos os mesmos graus académicos. Expatriado é alguém que sai da sua pátria, mas, há uma expressão muito bonita do ponto de vista romântico, no livro da selva, de Rudyard Kipling, ele tem um poema que chama “O Fardo do homem branco”, "The White Man's Burden". Aí ele chama atenção de que o homem branco vai para as colónias sacrificar-se pelo bem dos colonizados, ora hoje os expatriados continuam a ter essa missão, portanto vão para Moçambique e Angola, trabalhar, ajudar-nos a desenvolvermo-nos, se as coisas não correm bem a responsabilidade é nossa, se correm bem os louros são deles.

O segundo objetivo do Estatuto do Indigenato era utilizar a mão de obra local, declarando-a incompetente e que tinham que ser educados através do trabalho, para promover as riquezas do território, foram declarados bárbaros, sem instituições. Aí surge o problema da inconstitucionalidade, quando aceitamos que não há instituições e que eles são meras autoridades locais tradicionais, estamos a comprar o modelo colonial que nos diz que a única forma de institucionalidade é o estado moderno exportado da Europa.

Existe alguma situação característica que seja transversal a todas as ex-colónias de África, nomeadamente nos PALOP?

Não acho que existam PALOPs, considero que é uma expressão pejorativa que significa que temos como pecado original termos sido colónias portuguesas e não temos outra história a não ser a da colonização portuguesa, nunca estive em São Tomé e Príncipe, logo tenho muitos problemas em dizer que sou PALOP, isto vem substituir um pouco o que ouvimos de colegas ditos retornados, quando dizem: Estive em África, e eu pergunto mas em África aonde? Marrocos é África, Tunísia é África. São países independentes, cada um lutou pelo direito à auto-determinação, portanto eu exijo ser reconhecida como moçambicana de cidadania.

A sigla PALOP remete-me para uma geografia colonial que reflete os interesses e a perspetiva das metrópoles colonizadoras e não me parece que permita maior unidade e maior diálogo entre as nossas diferenças a nível do continente, obviamente herdamos as línguas mas há outras questões que nos interpelam a pensar coletivamente. As questões que se concentram aqui é esta arbitrariedade de ter que haver uma língua de unidade.

Temos a língua e algumas experiências de colonização em comum, mas nem todas as experiências de colonização são semelhantes, Angola e Moçambique eram colónias de povoamento colonial e por isso foram exportadas para estes territórios as instituições judiciais, saúde, correios, bancos, escolas, etc. Já São Tomé e Guiné Bissau eram colónias de exploração económica, as pequenas elites locais mandavam os filhos estudar fora, creio que a Guiné tem a primeira escola secundária nos anos 50 e São Tomé também. Dez anos depois já Moçambique começou com estudos gerais e universitários que foram a base da universidade, são situações específicas que devemos ter em conta. Acho também que há uma narrativa dominante, diria muito feita, por oposição, sobretudo a partir dos contextos americanos, Canadá ou Chile, que é uma narrativa sobre um Atlântico visto na perspetiva deles.

No caso africano não podemos esquecer que além do Atlântico ainda temos o Mediterrâneo e o Indico como espaços de ligação, no Indico com ligações milenares, temos o Périplo do Mar Eritreu em que já Herodotus falava nas ligações que havia por ali portanto o contexto africano é um contexto que até a zona do centro de Moçambique teve uma rota milenar de contactos comerciais, religiosos, políticos etc. Não podemos negar que quando Vasco da Gama passa por aquela região leva consigo o cronista, Álvaro Velho que faz uma descrição desta região, dizendo que é muito parecida com Évora e faz a descrição de um espaço urbano tendo como referência Évora, quando passa por Zanzibar faz uma descrição muito sofisticada de como o rei local os vai receber, não tem nada que ver com o que aparece nos livros de história que não sei de onde vem, que andavam todos nus, organizados em tribos e de lança em puno para matar o primeiro que surgisse, e estou a falar de um cronista português cujas crónicas estão disponíveis online. 

Exceto em casos em que é estritamente necessário ceder evito sempre usar a sigla PALOP, para mim significa que não temos mais nada de nosso a não ser a história e a língua que nos foi dada por Portugal, mas pertencemos a outras histórias, a outros contextos civilizacionais. Não digo que o colonialismo não é parte do nosso ADN, esse é o grande dilema de uma leitura que problematiza o próprio desenvolvimento africano. São estes 4 ou 5 grandes blocos linguísticos que continuam a ser vistos, como a África anglófona, francófona, lusófona e depois lá vêm os outros que são os árabes. Então o Tchad o que é? Será mundo árabe? Francófono?